sexta-feira, novembro 21, 2003 Nota despeitada sobre um homem mais livre que eu
O velho alfarrabista, meu vizinho, que nos últimos dias surgiu com chapéu de bombazina cor de tijolo de largas abas, abotoa o casaco de aviador de napa castanha e sobe para a bicicleta. A rafeira castanha, que nunca o larga, fica nervosa. Também quer subir. Tenta galgar o ar até ao selim. Não consegue. Começa a descrever círculos em torno da bicicleta, o que obriga o alfarrabista a avançar em ziguezague para não a magoar. Desaparecem os dois dentro da garagem. Daí a minutos, o alfarrabista sai na Diane, a bicicleta no tejadilho, a cadela no banco ao lado, orelhas coladas à nuca, orgulhosa, focinho à janela, tremente, a inquirir o vento. Do banco de trás nem sinal, que o zorro encheu toda a parte traseira do carro com mais um carregamento de livros.
Que acontecerá aos livros não sei, mas este alfarrabista tem pinta de distribuidor, de outra forma só receberia, mas é frequente evaporar-se durante horas com o carrinho cheio de livros, a cadela e a bicicleta. Suspeito que sim, que é dealer, que sob este ar de velhinho enxuto e lúcido se esconde uma alma ignóbil responsável pela falência de tantas pessoas sem focinho para inquirir o vento, condenadas a procurar respostas na literatura, e que no regresso, depois de entregues os livros numa qualquer loja, este alfarrabista, que vive numa garagem sem o menor conforto, faz um desvio, pára o carro num lugar ermo, onde o som do trânsito é vago e distante, um lugar alto onde o céu é o mundo quase todo e onde em Janeiro crescerão azedas, e passeia de bicicleta, enquanto a cadela, com uma orelha sintonizada na bicicleta e a outra no motor da Diane, conversa com as ervas e fareja as nuvens.