domingo, novembro 02, 2003 Le Horla & outros duplos
"Le Horla", por Mário Botas
É de ver que a contracapa de um livrinho como este não oferece espaço suficiente para que se aborde a mola real de toda a obra maupassantiana. Refiro-me ao problemo do duplo que, desde a adolescência atormentou o infeliz folgazão, desportista e garanhão que veio ao mundo como se fora uma alma penada («chamo-me Mauvais passant», dizia ele, misteriosamente aos 14 anos…), uma aventesma, uma dessas alucinações que, de tempos a tempos, «vemos sentada na nossa própria cadeira, como se fôssemos nós próprios»; e que, sobretudo, se reflete nos espelhos, sejam um verdadeiro vidro polido, um lago de jardim ou as águas pratedas do Sena… «Quem sou? De onde venho? Para onde vou? – interroga-se Maupassant, e como a imagem restituída pelo espelho não lhe responde (Jean Cocteau, seu admirador, tentará igualmente desvendar esse outro Mundo, anos mais tarde, por via cinematográfica, com Le Sang d’un Poète e Orphée…), evade-se, não apenas no sexo, mas num peregrinar, vagabundear, que o leve para longe de si próprio!… Debalde, – porque o outro não o larga, já que assentou arraiais dentro de si!
Antes de vir a ser quem foi, Maupassant escreveu poemas que, mercê da fama grangeada com Boule de Suif, encontraram – finalmente! – um editor em 1880. O volume tem por título Des Vers, que tanto podem ser versos como Vermes… Não sei. O que se é que, pelo menos dez anos antes de redigir LE HORLA ele escreveu (em boa poesia, claro, e não nesta tradução (?) mal-amanhada):
Passava da meia noite e, de repente, senti medo.
Medo de quê? Não sei, mas era um medo horrível.
Alanceado e trémulo de pavor, compreendi
que ia passar-se em breve uma coisa terrível…
Pareceu-me sentir que, nas minhas costas.
Estava alguém de pé, a rir, imóvel e nervoso!
Porém, eu nada ouvia…. Nada… Oh tortura!
Sentir que me ia passar a mão pela fronte
E apoiar-se-me no ombro… Saber que vou morrer
Se ele assim, friamente, o entender… (…)
O Horla é um trecho que ninguém tem o direito de desconhecer – e é com ansiedade que aguardo um estudo verdadeiramente científico de toda a obra de Maupassant que, no entanto, pode ser lida, saltando-se por cima dele, para conhecer melhor aquele a quem o seu fiel François Tassart, que viveu largos anos ao seu serviço, considerava «um homem supinamente bom, recto e fiel»… que teve apenas a desdita de ser um mau passante por este mundo de Cristo… e de ter Génio).
Jorge Reis, que traduziu “O Horla” (editado pela Difel em 1987)
"Le Horla", assim mesmo, em francês, pode ser lido aqui. É só carregar o documento em formato PDF.
Ainda sobre o duplo, encontrei este texto que compara “O Horla”, de Maupassant com a “Confissão de Lúcio”, de Mário de Sá-Carneiro (também disponível em PDF).
E não resisto a sugerir ainda outro livro. Não tem nada a ver com duplos, trata-se de “Leôncio e Lena”, uma comédia deliciosa de Georg Büchner.