sexta-feira, novembro 21, 2003
3 poemas de Eugénio Montale
Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, com um terror de bêbedo.
Depois como numa tela, acamparão de um jato
árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde – e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.
Madrigais privados
Deste meu nome a uma árvore? Não é pouca coisa;
embora não me resigne a ficar apenas sombra, ou tronco,
abandonado num subúrbio. Eu o teu
dei a um rio, a um longo incêndio, à minha sorte
cruel, à confiança
sobre-humana com que falaste ao sapo
que saiu do esgoto, sem horror ou pena
ou exaltação, ao alento daquele poderoso
e suave lábio teu que consegue,
nomeando, criar: sapo flores relva rocha —
carvalho pronto a desfraldar-se sobre nós
quando a chuva dispersa o pólen das carnosas
pétalas de trevo e a chama se levanta.
O Sabiá
O sabiá canta na terra, não sobre as árvores,
assim disse uma vez um poeta sem asas,
e antecipou o fim de toda vida vegetal.
Existe além disso quem não canta nem sobre nem sob
e ignoro se é pássaro ou homem ou outro animal.
Existe, ou existia talvez, hoje está reduzido
a nada ou quase nada. E já é muito pelo que vale.