A música electrónica parece-me oferecer possibilidades infinitamente valiosas ao cinema. Artemiev e eu a utilizamos em algumas cenas de “O Espelho”.
Queríamos que o som se assemelhase ao de um eco terrestre, cheio de sugestões poéticas – que fizesse lembrar sussurros, suspiros. As notas deveriam transmitir o facto de que a realidade é condicional, e, ao mesmo tempo, deveriam reproduzir com exactidão estados de espírito específicos, os sons do mundo interior de uma pessoa. No momento em que a ouvimos como ela é, e percebemos que está sendo construída, a música electrónica morre, e Artemiev precisou recorrer a artifícios muito complexos para obter os sons que desejávamos. A música electrónica deve ser depurada de suas origens “químicas”, para que, ao ouvi-la, possamos descobrir nela as notas primordiais do mundo.
A música instrumental é artisticamente tão autónoma que é muito mais difícil dissolvê-la no filme ao ponto de torná-la uma parte orgânica dele. Sua utilização, portanto, sempre implicará certa medida de concessão, pois ela é sempre ilustrativa. Além do mais, a música electrónica tem a capacidade exacta de se dissolver na atmosfera sonora geral. Pode ocultar-se por trás de outros sons e permanecer indistinta, como a voz da natureza, cheia de misteriosas alusões… Ela pode ser como a respiração de uma pessoa.
Andrei Tarkovsky, “Esculpir o tempo”
“O Espelho”, de Andrei Tarkovsky continua em exibição no CINE-ESTUDIO 222 até quarta-feira. E o realizador russo continua a falar aqui.