Continuamos a ler, a meias com a Montanha Mágica, “Esculpir o Tempo”, de Andrei Tarkovski.
Sublinhei esta belíssima passagem sobre o trigo-sarraceno.
”O Espelho” é também a história da velha casa onde o narrador passou a sua infância, da fazenda onde ele nasceu e onde viveram seu pai e sua mãe. Esta casa, que com o passar dos anos se transformara em ruínas, foi reconstruída, “ressuscitada” a partir de fotografias da época e dos alicerces que ainda sobreviviam. Assim, acabou ficando exactamente como fora quarenta anos antes. Quando mais tarde levamos até lá minha mãe, que passara a infância naquele lugar e naquela casa, sua reacção superou todas as minhas expectativas. O que ela experimentou foi uma volta ao seu passado, e isso me deu a certeza de que estávamos no caminho certo. A casa despertou nela os sentimentos que o filme pretendia expressar…
Diante da casa, estendia-se um campo; lembro que crescia trigo-sarraceno entre ela e a estrada que levava ao próximo vilarejo. O trigo-sarraceno é muito bonito quando está em floração. As flores brancas, que dão o efeito de um campo coberto de neve, ficaram em minhas lembranças como um dos detalhes essenciais e inesquecíveis da minha infância. Porém, quando chegamos para decidir onde filmaríamos, não havia trigo-sarraceno à vista – há anos que o “kolkoz” vinha semeando os campos com trevo e aveia.
Quando pedimos que semeassem trigo-sarraceno, garantiram que a planta não crescia ali, pois o solo não favorecia o seu cultivo. Apesar disso, arrendamos o campo e semeamos o trigo por nossa própria conta e risco. As pessoas do “kolkoz” não conseguiram esconder o espanto quando viram o trigo brotar; quanto a nós, vimos essa conquista como um bom presságio. Ela parecia nos dizer algo sobre a qualidade especial da nossa memória – sobre sua capacidade de penetrar para além dos véus estendidos pelo tempo, e era exactamente sobre isso o filme: essa era sua ideia seminal.
Não sei o que teria sido o filme se o trigo-sarraceno não crescesse… Nunca me esquecerei do momento em que ele começou a florir.