quinta-feira, outubro 09, 2003
Não é vulgar aparecerem-me poemas quando estou a trabalhar. Passam-me muitas letras pela frente mas são quase todas vãs,um desperdício. No entanto hoje deparei com esta carta e roubei-a
[CONSOLAÇÃO DE G. A PAULINA]
"Os que, ao fim da vida toda,
regressaram à sua fortaleza,
já não têm agora tempo
nem espaço para oferecer à morte;
nem morte para oferecer a si mesmos.
Séneca na estufa esvaindo-se em vagaroso sangue,
aspergido sobre os escravos
como uma dádiva de recta vida.
É possível ser rico e ser recto? É.
Mas pode a morte ser
testemunha da vida?
Porque é tão difícil, Paulina, morrer em tom menor,
sem tragédia e sem justificações,
sem procurar inutilmente a salvação
da vida
(já que os bens ficam ao cuidado do testamenteiro),
é tão impertinente deixar escrito,
ainda por cima tão bem escrito:
"Queimem o meu cadáver sem qualquer cerimonial",
é tão decepcionante, tão desproporcionado!
Outros, menos desesperançados e menos amedrontados,
fitam com impacientes olhos os médicos
invejando-lhes a excelente saúde e a barba feita,
e por mais um dia de vida,
de penosa e vagarosa vida,
seriam capazes de trocar
cinquenta anos de riqueza e rectidão.
Estes parecem-me, a mim que
não sou um filósofo,
bem mais sólidos e mais irrefutáveis.
Ocorreu-me ontem que
não vejo o correio há uma semana,
e que nem por isso sou mais feliz ou mais infeliz;
a felicidade não depende certamente de coisas como o correio
ou como o temor ou o desejo
depende talvez mais, pelo menos para já,
da certeza de que os papéis estão arrumados,
pagas as dívidas,
intacta ainda a possibilidade de morrer.
Um dia destes, se fosse caso disso,
escrever-te-ia sobre a discordante paixão da
imortalidade.
Agora é tarde, estão já
à porta os assassinos.
Teu Gallion."