1. E, no entanto, a vida é agradável, amena. Terça-feira vem depois de segunda. A seguir é quarta-feira. O nosso espírito desenvolve-se por anéis, a identidade fortalece-se e a própria dor é absorvida nesta sensação de contínuo crescimento. As válvulas de segurança do espírito abrem-se e fecham-se com intensidade crescente; a pressa e as febris sensações de juventude encontram a sua aplicação e tudo parece funcionar com a perfeição de um mecanismo de relógio. Com que rapidez a corrente da vida nos transporta das coisas, que se tornaram tão familiares que já nos não apercebemos da sua sombra. Flutuamos. Flutuamos, na superfície da corrente.
É um monólogo de Bernard (páginas 206 e 207 d’ “As Ondas”, edição da Relógio d’Água). Mais um, perfeito para mostrar como a Virginia Woolf escreve sobre o tempo e o transforma numa belíssima imagem de movimento, de corrente.
Para além dos acontecimentos, das personagens e das suas emoções está sempre perfeitamente visível o fluxo do tempo que neste livro é também o fluxo da água.
Flutuar na superfície da corrente, é assim que Bernard define a vida. (e é assim que Virginia constrói a sua morte, numa corrente descontínua, cheia de perigos e abalos?)
2. – E o tempo, disse Bernard, esgota-se. A gota transforma-se no telhado da nossa casa e depois cai. É o tempo que a faz cair.
…
Esta gota que está a cair nada tem a ver com a minha juventude perdida. A queda desta gota é o tempo adelgaçando-se até formar um ponto. O tempo, esse prado ensolarado em que dança uma luz, o tempo, essa extensão plana como um campo ao meio-dia, começa a inclinar-se. Adelgaça-se até formar um único ponto. O tempo escoa-se, como se escoa o líquido para fora do vaso deixando ficar um depósito. Estes são os verdadeiros ciclos, os verdadeiros acontecimentos da minha vida. Pois, como se toda a luminosidade da atmosfera refluisse subitamente como uma vaga, vejo o fundo das coisas tal como ele é. (página 148)
3. Há ainda um monólogo de Rhoda (páginas 104 e 105) que merece ser citado porque Rhoda é a que não encaixa no seu corpo, é a que tem dificuldade em flutuar, é a que tem medo. (é um contraponto de Bernard?)
A porta abre-se e o tigre salta (um aparte – esta imagem do tigre lembra outra de Eliot: “O tigre salta no ano novo. E nos devora” ) Não me viram entrar. Fiz mil desvios entre as cadeiras para evitar o horror dum encontro brusco. Tenho medo de vocês. Tenho medo do choque das sensações pois não posso acolhê-las como vocês fazem, não sou capaz de fundir o momento presente com o que vem a seguir. Para mim todos os momentos são violentos e isolados. E se sucumbisse ao choque do instante, lançar-se-iam sobre mim para me despedaçar. Não tenho nenhum objectivo. Não consigo enfiar uns nos outros os minutos e as horas, dissolvendo-os por um processo simples, de modo a que formem essa massa indivisível a que vocês chamam vida .
4. Descobri também um texto muito bom da Marguerite Yourcenar. Trata-se de um pequeno ensaio que faz parte do livro “Peregrino e Estrangeiro” (edição Livros do Brasil). Prometo digitalizá-lo e colocá-lo on-line na próxima semana.