quarta-feira, setembro 03, 2003
Passagens(2)-Marca de água
"Há muitas e muitas luas, um dólar eram 870 libras e eu era um homem de trinta e dois anos. Também o mundo era mais leve, dois biliões de almas mais leve, e o bar da stazione a que eu chegara nessa fria noite de Dezembro estava vazio. Fiquei ali parado, à espera da única pessoa que conhecia na cidade. Ela chegou bastante atrasada.
Todos os viajantes conhecem estes apuros: este misto de fadiga e de apreensão. É o momento de examinar rostos e horários, de perscrutar as varizes do mármore debaixo dos pés, de inalar o cheiro a amoníaco e o vago odor que nas noites frias de Inverno emana do ferro fundido das locomotivas.
À excepção do barman ensonado e da matrona imóvel como um buda atrás da caixa registadora, não se via ninguém. Nem um nem a outra me podiam valer, porém, como eu não podia valer a nenhum dos dois: a minha única moeda na língua deles, o termo " expresso", já estava gasta; usara-a duas vezes.
Comprara-lhes também o meu primeiríssimo maço daquilo que em anos vindouros traduziria por " Merde Statale", " Movimento Sociale" e "Morte Sicura": o meu primeiro maço de MS. Por isso peguei nas malas e saí à rua.
No caso improvável de alguém ter seguido com os olhos a minha gabardina branca London Fog e o meu Borsalino castanho escuro, a silhueta não lhe deve ter causado qualquer estranheza. Estou certo de que a própria noite não teria tido dificuldade em a absorver. O mimetismo ocupa, julgo eu, um lugar importante na lista de prioridades de todos os viajantes, e a Itália que eu trazia então no espírito era uma fusão dos filmes a preto a branco dos anos cinquenta e do meio de expressão, também monocromático, do meu ofício. O Inverno era, pois, a minha estação; a única coisa que me faltava, pensei, para parecer um bandido ou carbonaro das redondezas era um lenço de pescoço. Tirando isso, sentia-me capaz de passar despercebido, de me confundir com o cenário ou de me enquadrar no enredo de um desses policiais de orçamento modesto- um policial ou, melhor ainda, um melodrama. "
Joseph Brodsky, Marca de água,Publicações D.Quixote,1993.