quinta-feira, setembro 25, 2003 Lá de onde as coisas provêm, retornam, pagando uma à outra
o castigo de ter vindo segundo a ordem injusta do tempo. Anaximandro
Ontem revi "O Delfim" na televisão. É um filme brilhante e um excelente retrato do país.
Gosto dos actores, do marialva decadente, composto na perfeição pelo Rogério Samora, e da bela Alexandra Lencastre. Gosto das cores, os vermelhos da roupa dela, da echarpe, do jaguar. Gosto dos sons do vento, dos patos e dos cães e da música (é um filme para ouvir de auscultadores) E, acima de tudo, gosto dos diálogos, tão certos e tão profundos.
A história constrói-se em vários níveis. É possível acompanhar o desaire do Infante Tomás Palma Bravo mas também é possivel ver outras coisas, muitas.
As mulheres, por exemplo. Há três notáveis: a criada, que aguenta o contrato, firme e carrancuda; Maria das Mercês, cheia de desejos mas submissa, apodrecendo no lodo; e a rapariga, que chega num Mini apenas com dois cães e, quando a caçada acaba, parte.
Os carros, também. O belo e sensual jaguar, vermelho e veloz, guiado desbragadamente por Tomás; o Renault 4 do "senhor doutor", o caçador, detective e narrador, observador todo-o-terreno; um NSU, algures numa bomba de gasolina; o carro que a Mercês nunca terá; e o Mini, da rapariga independente e solitária.
E o poder, o grande jogo. Passando das mãos do Infante, o dono da lagoa, para o presidente da junta que acumula cargos, espertezas saloias e sabe que é preciso ter as quotas em dia.
No fim, rodeando a lagoa, em direcção ao mar, também nós sentimos o sono, o sono. Que a noite caia. Belo, belíssimo!
Sendo, seguramente, um dos maiores romances contemporâneos portugueses "O Delfim" é, para mim, sobretudo um prodigioso pretexto cinematográfico para entender paixões e emoções, misérias e grandezas, de um Portugal agonizante, em plena guerra colonial e com o seu ditador (Salazar) a morrer lentamente, como o país.
Será também um filme sobre um tempo em suspensão. E sobre um universo metafórico - a Gafeira - que é a propriedade e ao mesmo tempo a imagem de Tomás Palma Bravo, o herdeiro e último representante de uma raça em vias de extinção.
A narrativa, próxima do policial, vai processar-se como na "Detective Story" de W. H. Auden:
«A sequência é banal. Tudo corre segundo o plano:
A disputa entre o senso comum local
E a intuição, esse amador irritante
Que tem sempre a sorte de chegar ao local antes de nós
Tudo corre segundo o plano, a mentira e a confissão
Até à excitante perseguição final, o assassínio.»
Os "décores" e as paisagens, os bichos e os animais, a luz fria atravessada por neblinas que partem da lagoa e envolvem toda a Gafeira (casas e pessoas), serão elementos fundamentais do tratamento da imagem, que se pretende densa, quase palpável.
A banda sonora terá dois "leit-motiv" constantes: o ronco brutal do carro (um insólito e fálico Jaguar-E) e os latidos pungentes dos mastins de Palma Bravo. A única ligação ao mundo exterior para Maria das Mercês, a reclusa da imensa casa de Tomás, será o telefone e a televisão. O resto, o que se ouve do exterior da Gafeira, é o tilintar das bicicletas dos camponeses e os tiros repetitivos dos caçadores de patos.
A música será toda trabalhada a partir de temas da grande tradição barroca portuguesa, inspirada sobretudo num dos seus compositores maiores - Marcos de Portugal.