sexta-feira, setembro 26, 2003
a história de um homem que procura a morte e que só encontra a vida
– Disse-nos que tinha tido dificuldade em gostar do seu último filme, “O vento levar-nos-à”. Ouvir os outros falar do filme reconciliou-me com ele, quando soube que os espectadores tinham compreendido do filme exactamente aquilo que eu queria que eles compreendessem. Para se gostar do seu próprio filme é preciso desde logo uma distanciação em relação a ele, antes de o rever. Há recordações ligadas à rodagem que ainda me incomodam, detalhes de que não gosto. Fazer este filme demorou quase sete meses e isso deixou-me exausto… O filme começou a morrer na mesa de montagem. E foram precisos os vossos olhares para o ressuscitar.
– O filme passa-se em paisagens magníficas. Será que, como disse John Ford, a sua vontade de fazer este filme resulta também da vontade de passar algum tempo neste enquadramento também esplêndido? É precisamente isso: procurei um pretexto para ir para aquela paisagem. O tema pouco importava; o que contou foi o meu desejo por aqueles lugares que vemos no filme. Há quatro anos, alguém me trouxe o tema e eu vi aí a oportunidade de filmar aquelas paisagens. Fui lá e durante dois anos tirei fotografias de repérage, até encontrar aquela aldeia, suficientemente estranha aos meus olhos – a mais estranha que já vi. Depois de transpor o tema para a aldeia, juntei os elementos do filme como uma vestimenta.
– O que é que essa aldeia tinha de tão estranho? Os habitantes e a sua atitude a nosso respeito. Eles não conheciam o nosso trabalho e fomos considerados intrusos, um pouco como a equipa de rodagem do filme, e comunicar com eles manteve-se difícil até ao último dia de rodagem. Mas estavam tão ocupados com o seu trabalho que não tinham tempo para se preocuparem connosco – trabalhavam de manhã à noite e não faziam mais nada. E como a cerimónia fúnubre evocada no filme está ligada a uma forma de economia primitiva, era preciso que a aldeia fosse distante e recolhida para que fosse credível.
– Asssitiu a essa cerimónia? Não, mas acho que ela existe porque vi quatro instrumentos relacionados com ela: é como se a tivesse visto. Às vezes, os indícios são suficientes, e o cinema contenta-se em dar indícios ao espectador mais do que deseja mostrar tudo. O cinema que me interessa consiste em persuadir o espectador.
– É por isso que nunca mostra os colaboradores da personagem principal? Ouvimo-los falar, é suficiente, é inútil mostrá-los: sabemos que eles estão lá.
– Há uma parte autobiográfica de Abbas Kiarostami, cineasta próximo do documentário, que se pode encontrar na situação da personagem do filme? É possível… Todo o ser humano fala sempre de si mesmo, o que quer que se faça, é uma regra geral. Cada vez que conto alguma coisa, conto uma parte de mim.
– Os habitantes da aldeia aceitaram interpretar o papel de si mesmos? Não. Para todos os papéis com alguma importância, à excepção da jovem, fui buscar habitantes das aldeias à volta. Era impossível pôr os daquela aldeia à frente da câmara, e só os vemos como silhuetas. Tinha de usar todo o tipo de manhas, de lhes contar não importa o que fosse, para os poder filmar um bocadinho. Para filmar a cena do desabamento, pus uma pessoa da nossa equipa no fundo do poço e fiz-los crer que era um verdadeiro acidente. Aí, vieram ajudar, mas nunca se teriam movido se soubesssem que era apenas a rodagem de um acidente simulado. Recusavam-se mesmo a filmar por dinheiro. Para eles, éramos incapazes de fazer um trabalho sério. O fascínio do cinema não funcionou aqui, trata-se de um outro planeta. Sei que não vou mostrar lá o filme porque ver a sua própria aldeia no ecrã não lhes interessa absolutamente nada.
– Num dos planos vemos o acasalamento de duas vacas. Foi um acaso ou uma encenação com um significado? Era Verão e cada vez mais queríamos filmar os animais, eles estavam a acasalar! A vida continua… Era a estação dos amores. Toda a aldeia acasalava, os animais e as pessoas… Todos menos nós!
– O sexo está efectivamente muito presente. Sim. Se quisermos resumir o filme numa linha, é a história de um homem que procura a morte e que só encontra a vida. E naquela aldeia a vida está presente em todo o lado, de maneira ainda mais forte do que a filmamos.
Abbas Kiarostami entrevistado por Fréderic Bonnaud e Serge Kaganski para a revista “Les Inrockuptibles” (24.11.1999)
Retirado da folha do Cineclube do Porto que acompanhou a sessão
Próximas sessões do Cineclube do Porto (16h00 e 21h30, Casa das Artes):
05.10 O Passo suspenso da cegonha, de Theo Angelopoulos
19.10 Mãe e filho, de Alexandr Sokuvov