quinta-feira, setembro 18, 2003
Fanny e Alexander (V)
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A 10 de Novembro, escrevo o seguinte:
Penso amiúde em Ingrid Bergman. Ainda gostaria de escrever um roteiro para ela que não fosse demasiado fatigante. Quando penso nisso, vejo uma varanda, é verão e está chovendo. Ela está só, esperando que os filhos cheguem. Os filhos e os netos. A acção se passa à tarde, todo o filme decorre nesta varanda, tendo a mesma duração que a chuva que está caindo. A natureza se mostra deslumbrante, envolvida, como está, por esta branda garoa. Ela começa por falar ao telefone. A família saiu para fazer uma excursão pelo lago. Ela fala com um amigo de há muito anos, que é muito mais velho do que ela. Existe grande intimidade entre ambos. Depois ela escreve uma carta. Encontra um objecto. Recorda a noite, num teatro, em que fez uma actuação memorável. Olha-se nas vidraças – e vê-se como quando era jovem.
O motivo por que ficou em casa é ter torcido um pé, mas, no fundo, acha agradável estar sozinha.
No final do filme ela avista a família que regressa da excursão. Continua chuviscando, embora já pouco.
Todo o filme se desenrola numa atmosfera positiva.
Uma varanda no verão, tudo envolto num brando claro-escuro. Neste filme não haverá contornos duros, será tudo tão suave como a própria chuva. Uma menina da vizinhança vem perguntar pelas crianças da casa. Eta trouxe consigo amoras e recebe, por sua vez, um pequeno presente. A criança está molhada, toda ela cheira bem. É uma vida pacífica a que se descreve. Uma vida sem mal, modesta, quase inconcebível. Quando observa as mãos da menina, ocorrem-llhe pensamentos invulgares, coisas que nunca lhe passaram pela cabeça. Um gato está deitado no sofá, ouve-se o tique-taque de um relógio, a fragância estial é forte. Depois, junto à porta que dá acesso à varanda, ela olha para o carvalho que cresce na encosta, para o pequeno cais de madeira junto ao lago, para a enseada. Tudo é tão seu conhecido, são coisas que vê diariamente e, contudo, parecem-lhe tão novas e inesperadas. Essa saudade misteriosa que emana de uma solidão repentina.
Isto parece ser outro filme, independente do primeiro, mas é material que acabei por usar em “Fanny e Alexander”. A decisão de descrever o lado luminoso da existência surge logo no início, no momento em que me é difícil suportar a vida. …