Tu és tão grande que eu já nem existo
quando me vou pôr ao pé de ti.
Tu és tão escuro; a minha fraca luz
não tem sentido ao pé da tua fímbria.
O teu querer é como uma onda
em que vai afogar-se cada dia.
Só a minha saudade
chega à altura do teu rosto,
e fica frente a ti como o maior dos anjos,
um anjo estranho, pálido, ainda não liberto,
a estender as asas para ti.
Ele já não quer aquele voo sem margens
pelo qual passavam pálidas as luas,
e dos mundos sabe há muito já bastante.
Com as asas quer ele, como com chamas,
ficar diante da tua face sombria
e quer, à luz clara delas, ver
se os teus cenhos escuros o condenam.
Rainer Maria Rilke,
Poemas, as elegias de Duino e sonetos a Orfeu (tradução Paulo Quintela), Ed. Asa, 2001
Fotografia: um anjo na Marginal (do Porto). 20.07.03, ao fim da tarde.