domingo, julho 27, 2003
Persona, de Ingmar Bergman I
Continuando o seu excelente trabalho, a Zero em comportamento vai apresentar nos próximos dias 29, 30 e 31 no Cine-Estúdio 222, uma cópia restaurada de “Persona”, de Ingmar Bergman.
É um filme a não perder. Merece ser visto e merece ser pensado, por isso resolvemos convidar o próprio realizador sueco para lançar algumas pistas de leitura. Começamos hoje a publicar alguns excertos do livro “Imagens”, editado no Brasil pela Martins Fontes. O livro foi escrito em discurso directo, parece uma conversa ou até mesmo um blog.
Senhores e senhoras: Ingmar Bergman
O que se segue foi escrito em Maio, em Ornö. refiro-me simultaneamente ao tema de “Persona” e de “A pele da serpente”. São notas da minha agenda de trabalho com data de 29 de Abril:
Vou tentar seguir as seguintes normas:
Café da manhã às sete e meia; juntamente com os outros pacientes.
Arranjar-me para o passeio matinal.
Não ler jornais ou revistas durante este período.
Não ter nenhum contacto com o teatro.
Não abrir cartas, telegramas ou receber mensagens telefónicas.
Ao fim da tarde estou autorizado a ir para casa.
Sinto que se aproxima o combate decissivo. O importante é não o odiar. Tenho de chegar a alguma conclusão, de contrário o Bergman vai dar em pantana.
Lendo isso, é evidente que a crise que atravessava era grave. Mais tarde, elaborei normas idênticas ao tentar suplantar toda aquela história dos impostos. A meticulosidade foi o meu bote de salvação.
E desta situação crítica foi surgindo “Persona”:
A personagem foi actriz – talvez possa transigir quanto à profissão? Depois, um dia, deixa de falar. Não há nada de estranho nisso.
Vou iniciar o filme com uma cena em que o médico informa a enfermeira Alma do que aconteceu à paciente. Essa é a primeira cena fundamental. Enfermeira e paciente se aproximam uma da outra, passando a ser como unha e carne. Mas a paciente não fala, rejeita a própria voz. Não quer faltar à verdade.
Estes são, portanto, os primeiros apontamentos da minha agenda de trabalho, com data de 12 de Abril. Ali também está uma coisa que não fiz, mas que tem relação com “Persona”, sobretudo com o título: “Quando o namorado de Alma, a enfermeira, lhe faz uma visita, ela apercebe-se pela primeira vez do modo como ele fala, nota como ele a toca, ficando aterrorizada porque percebe que ele está representando, está fazendo um papel.”
Mas quando sofremos é horrível, e então não representamos.
Confesso que essa fase da minha vida foi extremamente difícil. Tinha o pressentimento de que a minha existência estava ameaçada:
Será possível transpor isso para um processo interior?. Quer dizer, dar a entender que é uma composição a várias vozes, um “concerto grosso” no interior da mesma alma? De qualquer modo os factores do tempo e do lugar serão de importância secundária. Um segundo poderá abranger um largo lapso de tempo, conter uma série de réplicas dispostas sem nenhuma relação umas com as outras.
No filme concluído vê-se isso. Os actores mudam de lugar para lugar sem que os vejamos se deslocarem. Quando o fazem, a acção é prolongada ou encurtada, ficando assim anulado o factor tempo.
Depois surge uma coisa relacionada com algo muito antigo de minha infância:
Imagino um pedaço de filme branco, sem imagens. Esse pedaço passa uns segundos no projector e, pouco a pouco, ouvem-se palavras vindas da fita sonora (talvez só durante um instante). Depois surge justamente a palavra que eu imagino, logo seguida de um rosto que mal se distingue no branco da fita. É o rosto de Alma e da senhora Vogler.