On Reading é um livro sobre a ideia de leitura, isto é, sobre a visão da leitura. Como todos os actos humanos que exigem uma lenta e afeiçoada aprendizagem, ler, a visão da leitura, move à piedade. Ler na rua, entre os ruídos dos passeantes, dos automóveis, estar protegido, sentado no chão entre os detritos próprios das cidades, chupando um sorvete, ou guardado em casa, guardado pelos deuses do lar, o anjo-da-guarda da infância: querer ir ter, querer ir ter com alguém, ter marcado encontro com alguém:"agora enquanto posso..."; "ah! depois de estar tudo arrumado", "antes que a luz se extinga", "daqui a pouco não haverá tempo", "teria ficado aqui?", "meu Deus, conseguirei ir até ao fim?". À luz gordurosa do refeitório do asilo, um velho lê uma carta (Paris, 1929), refúgio da velhice, a sua prova;(...); os anjos no intervalo da representação teatral revendo o seu papel (Nova Iorque, 19 de Abril de 1938); os inúmeros refugiados nas varandas, sacadas, telhados (...). Esquece-se. Esquece-se o frio, os pés gelados (como na única fotografia que provém da Hungria, Estergom, 1915), o cheiro nauseabundo, a multidão, a alegria alheia, a dor de cada um, estar tanto tempo só. Pouco importa o que lêem todos eles, histórias de quadradinhos,notícias desportivas, o livro das salmos, o livro do Jacob, cartas, anedotas (...). Trata-se sempre de participar num segredo. No acto de leitura isso que é o próprio do homem-"um animal jamais substitui uma coisa pela outra", como diz Clarice Lispector-é levado ao seu limiar mais cego; rigorosamente falando, ler não substitui, suspende e faz caminhar, ler é um dos modos de antecipação mais prodigioso, em que o espírito se guarda e inspira, aprofundando, alargando e contraindo o tempo.
Maria Filomena Molder, Semear na Neve- Estudos sobre Walter Benjamin, Relógio d' Água Editores, 1999.