«– Ele que foi aquilo, Adelaide? – disse da sua alcova a Maria Sancha, anciã entrevada, suspendendo nos dedos esguios, que vão tecendo a morte, o corrupio das contas do rosário gastado do uso.
– Que é que havia de ser? O capador. Ou por aí algum amola-tesouras que chegou ao povo – tornou-lhe da cozinha a filha, que também ouvira e se maravilhara. Foi ver, para se certificar e também porque era amiga de novidades, e anunciou para dentro: – É o amolador, é. Pousou agora mesmo a tenda ali no largo.
– Abençoado homem, que assim toca de bem! – diz consigo a velha, e passa em falso duas contas do rosário, distraída a cismar coisas que a música despertaria nela. E alto, para a filha: – Tu não tens que lhe dar a amolar, Adelaide? A tesoura da costura já não anda a cortar lá muito bem... E sempre há-de haver por aí alguma faca a precisar duma afiadela...
– Olha o que está de consumida com as facas! Descanse, minha mãe, que o homem não se vai embora tão cedo. Chegou agora mesmo, ainda mal pousaria os pertences. Já lá vou, em tendo uma aberta. Ou julga que estou aqui de perna à vela?
A Maria Sancha calou-se. Para quê repontar? Só se por rabugice de velha, porque sabia bem que a filha, lidadeira e governada, não ia desaproveitar a passagem do amolador pela aldeia. Ninguém desaproveitava. Facas e tesouras e outras ferramentas de corte não levam vida fácil em Bragado, e o fio vai-se-lhes embotando, enchendo de bocas, há que rectificá-lo. Alguns têm, é certo, uma pedra de amolar na cozinha ou à entrada da porta, e nela se entretêm, num aperto, a refazer os gumes. Mas isso é num aperto. Porque não há nada que chegue ao esmeril do amolador, impulsionado ao ritmo certeiro e calmo do pedal, para deixar de novo apta para o corte, acerada como navalhas de barba, a cutelaria velha.
Que admira pois que já as donas revolvessem gavetas, à cata de facas para amolar? Algumas iam de passagem pondo olho em pote ou caçarola precisados de um pingo de solda, não calhasse por aí ser o amolador artista de amba-las-artes, como tanta vez sucedia. Havia três anos que esperavam a chegada do amolador, embora sem saberem quem nem quando havia de vir. Mas algum tinha de vir, porque as necessidades elementares da aldeia incham e crescem, tomam voz e clamam por satisfação, e ouvem-se-lhe os gritos nos povos em redor. Um dia, algum amolador ouviria o apelo e viria, com o seu dedo hábil e o seu esmeril, dar alma nova – fio novo – às facas cansadas. Certo como as aves-frias no Inverno.»