Não durmo. Acontece a quem toma chá de tília ao fim da tarde e lhe soma umas sete ou oito chávenas de darjeeling depois da meia-noite. Fumo. Tento dormir. Desisto. Ouço música. Leio. Começo a ouvir os pássaros (pássaros, deveras, nada de cantos insanos resultantes da insónia) por volta das quatro e meia da manhã, chinfrim habitual nas árvores da vizinhança. Quando se faz dia, arranjo-me e saio o mais depressa que consigo, isto é, lentamente, já que o cansaço me entorpece os gestos. Trago o Aurora: uma aurora, ainda que nietzscheana - sobretudo, por vezes, se nietzscheana - é sempre uma aurora, uma forma natural de amanhecer. Desço a rua e a meio compreendo que sussurro continuamente algo que depois reconheço como parte de A Tune a Day, de Preisner – esta peça lembra-me o crescendo de calor (fresquinho, quente, muito quente) das manhãs de Verão e ficava bem num certo cd indiscreto, se não no início, pelo menos na manhã do cd. Abro o Público. Se alguém tiver o exemplar em papel, leia por favor a legenda da fotografia da página 29, a do vírus: ‘vírus da sida apanhado no momento em que sai de um linfócito para infectar outras células’. Apanhado? No momento? Por quem? Pelo fotógrafo enviado especialmente para o esperar à saída do linfócito? Estas pequenas e inesperadas delícias da eloquente arte de legendar imagens científicas alegram uma manhã :)
Diz Nietzsche:
«Modificação do sentimento do espaço – O que é que mais contribui para a felicidade do homem? As coisas verdadeiras ou as coisas imaginárias? É certo que a distância entre extrema felicidade e a infelicidade mais profunda somente assume toda a sua amplitude em favor das coisas imaginadas. Esta espécie de sentimento do espaço reduz-se constantemente sob a acção da ciência: da mesma maneira mostrou-nos e mostra-nos ainda que a terra é pequena e que o próprio sistema solar é simplesmente um ponto.»