Volto ainda aos objectos, mas noutra perspectiva, não tentando adivinhar os que estão a desaparecer e as suas causas sociais (a transformação da família, a mudança do papel social da mulher,o enriquecimento da classe média, a luta contra a burocracia, o louvor da rapidez em detrimento de tudo o que é lento,…), mas tentando perceber a nossa ligação afectiva aos objectos.
Pensar neles não apenas como coisas utéis ou inutéis, mas como uma espécie de extensões de nós próprios, das nossas memórias e sentimentos.
Quando viajamos levamos connosco uma fotografia, um lápis, uns sapatos especiais, um frasco de perfume, um caderno, o que seja, porque sem eles somos muito menos que nós próprios.
Os sem abrigo que dormem por aí na rua, trazem consigo um saco com as suas coisas, objectos que não valem quase nada, jornais velhos (ah sim, servem para aquecer) e sacos e outros papéis e sabe-se lá mais o quê. Quais serão os seus tesouros?
Uma das imagens mais penosas que conheço (e tantas vezes vista em filmes) é a entrega dos objectos pessoais que os presos são obrigados a fazer antes de passar para o isolamento da cela, é aí que começa a punição.
Um dia, em Peniche, dei-me conta da imensa tristeza que existe nas celas despidas e da necessidade que os presos têm de criar novos objectos e, através deles, comunicarem.
Essa separação pode tomar proporções enormes. Lembro-me de uma passagem impressionante do livro “Se isto é um homem”, de Primo Levi em que ele conta o modo como os prisioneiros do campo de concentração eram despojados dos seus objectos e assim despojados da sua humanidade.
Então pela primeira vez nos apercebemos de que a nossa língua carece de palavras para exprimir esta ofensa, a destruição de um homem. Num ápice, com uma intuição quase profética, a realidade revelou-se-nos: chegámos ao fundo. Mais para baixo do que isto, não se pode ir: não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável. Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão, e se nos escutassem, não nos perceberiam. Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva.
Sabemos que, quanto a isto, dificilmente nos compreenderão, e é bom que assim seja. Mas considere cada um quanto valor, quanto significado está contido mesmo nos nossos mais pequenos hábitos quotidianos, nos nossos mil objectos que até o mendigo mais humilde possui: um lenço, uma velha carta, a fotografia de uma pessoa amada. Estas coisas fazem parte de nós, quase como se fossem membros do nosso corpo; não podemos sequer pensar em sermos privados delas, no nosso mundo, pois imediatamente encontraríamos outras para substituir as velhas, outros objectos que são nossos porquanto guardam e suscitam memórias nossas.
Imagine-se agora um homem ao qual, juntamente com as pessoas amadas, tiram a casa, os habitos, a roupa, enfim, tudo, literalmente tudo quanto possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à carência, esquecido da dignidade e bom senso, pois acontece facilmente, a quem tudo perdeu, perder-se a si próprio; reduzido a tal ponto que outros poderão sem problemas de consciência decidir da sua vida ou da sua morte para além de qualquer sentido de afinidade humana; no caso mais optimista, na base de uma mera avaliação de utilidade. Compreender-se-á então o duplo significado da expressão «Campo de Extermínio», e será claro que o tentemos exprimir com esta frase: jazer no fundo.