"Só sei que a música é um sine qua non na minha existência. Redefine a percepção que tenho de mim mesmo, ou melhor, aquilo que eu busco no transcendental. Por outras palavras, demonstra-me a realidade de uma presença, de um "além" factual, que resiste à circunspecção analítica ou empírica. Esta realidade é simultaneamente um lugar-comum, trivial, algo de palpável e de ulterior. Exerce um singular domínio sobre nós. Nem a psicanálise nem o descontrucionismo ou o pós-modernismo conseguiram dizer algo de esclarecedor sobre a música, o que me parece um facto crucial. Esses jogos linguísticos de decifração subversiva, de suspeita na esteira da Nietzsche e Freud, são praticamente impotentes no que toca à música. Permanecem encurralados, na sua arrogância, dentro da esfera linguística que dizem relativizar ou deslindar. Por que razão os havemos de levar a sério a nível humano ou filosófico?
Outra coisa se poderá inferir- como o fez Wittgenstein quando nos contou que, mais de uma vez, o lento movimento do Terceiro Quarteto de Brahms o arredara da ideia do suicídio. A música autoriza, convida à conclusão de que as ciências teóricas e práticas ou a investigação racional jamais conseguirão decifrar completamente a existência. (...)
Os argumentos filosóficos desde a antiguidade até aos nossos dias- de Platão, de Nietzsche, por vezes de Wittgenstein-podem ter uma cadência e musicalidade distintas. As afirmações de que a arquitectura é "música congelada", de que a poesia aspira à condição de música enquanto tautologia perfeita de forma e contéudo (sendo que na música a forma é o conteúdo e vice-versa),são imagens que exprimem verdades profundamente sentidas mas não fundadas na razão.
Quem pode definir a "alma"? Mas quem é que não percebe intuitivamente a apostrófe de Shakespeare contra aqueles que "não têm música na alma", uma ideia cristalizada pela designação "música soul"? Não ouso sequer imaginar as limitações, a miséria humana infligida pela cegueira, mas interrogo-me se a surdez não será a mais escura das escuridades."