os livros e o luar contra a cultura
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«Os irmãos Vicario entraram às 4.10. A essa hora só se vendiam petiscos, mas Clotilde Armenta vendeu-lhes uma garrafa de aguardente de cana, não só pela estima que tinha por eles, mas também porque estava agradecidíssima pelo bocado de bolo que lhe tinham mandado. Beberam a garrafa inteira em duas grandes goladas, mas continuaram como se nada fosse. «Estavam pasmos», disse-me Clotilde Armenta, «e já não iam lá nem com uma medida de petróleo pelos gorgomilos.» Despiram então os casacos, dependuraram-nos com todo o cuidado nas costas das cadeiras, e pediram outra garrafa. Tinham a camisa suja de suor seco e uma barba de dois dias que lhes dava um ar montês. A segunda garrafa beberam-na mais devagar, sentados, olhando com insistência para a casa de Plácida Linero, no passeio oposto, com as janelas sem luz. A maior varanda era a do quarto de Santiago Nasar. Pedro Vicario perguntou a Clotilde Armenta se tinha visto luz nessa janela, e ela disse que não, mas pareceu-lhe uma curiosidade estranha.
- Sucedeu-lhe alguma coisa? – perguntou.
- Nada – respondeu Pedro Vicario. – Nós é que andamos à procura dele para matá-lo.»
Peguei-lhe ontem à noite, já tarde, porque estava desarrumado, deitado por cima de outros livros, e estava assim porque pretendia há muito relê-lo. Livro relâmpago, livro violentíssimo, livro maravilhoso. Culmina com a anunciada morte de Santiago Nasar, às mãos de Pablo, um dos gémeos Vicario, que, desesperado porque Santiago não morria - «Porra, primo, sabes lá como é difícil matar um homem, não fazes ideia!» -, lhe aplicou «um talho horizontal no ventre» por onde «os intestinos afloraram como uma explosão.» .
Esta é a história do crime de honra cometido por Pablo e Pedro Vicario, em defesa da irmã, friamente - afiaram as facas cedo, com zelo: «No fim, fizeram cantar as facas na pedra, e Pablo chegou-se à lâmpada para ver cintilar o aço.» -, apaixonadamente, sem vacilar. É de 1981 e eu li-o pela primeira vez há uns 5 ou 6 anos, num só fôlego. Não sou propriamente admiradora de Gabriel García Márquez (do qual li apenas, além deste livro, Ninguém Escreve ao Coronel, Cem Anos de Solidão e Doze Contos Peregrinos), mas Crónica de uma Morte Anunciada é um dos livros que mais gozo me deu ler até hoje. Ontem fiquei contentíssima porque a segunda leitura foi igualmente magnífica.
Para extrair prazer deste livro são necessárias, parece-me, duas coisas. Uma: aceitar a história. Aceitá-la enquanto ficção, enquanto possibilidade, enquanto amostra da terrível fatalidade da condição humana e dos alçapões inerentes à vulnerabilidade daí resultante. Outra: gostar de música.
Porque é disso que se trata neste livro, sobretudo, é essa a força deste livro e é essa a razão pela qual uma substância tão monstruosa como um crime de honra friamente concretizado – e anunciado – gera uma leitura irresistível, incomparável, inesquecível. Este é um dos livros em que a ideia de música mais insistentemente me ocorre. E Gabriel García Márquez sabia o que fazia e sabia que o fazia. Daí a velocidade alucinante da narrativa, a disposição anacrónica do discurso, as retrospecções e antecipações e daí, trágico e inevitável, como em qualquer oratório, o coro. O coro, presente nos escassos diálogos, em que as muitas vozes intervenientes nos dizem, com uma frequência que não pode ser inocente, no crescendo insuportável do desastre, uma e outra vez, que «Santiago Nasar vai morrer.». Ou que já morreu. Ou que está a morrer. Até ao diálogo final, tão definitivo como os outros, no qual o morto, pela primeira vez, se anuncia:
«- Santiago, meu filho – gritou -, que tens tu?
[...]
- Mataram-me, menina Wene. – disse ele.»