os livros e o luar contra a cultura
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«Não é preciso estar sentado no escuro para pensar. Às vezes pensa ao volante do carro, ou no duche ou sentado na sanita. A vida real é tão comum e vulgar, despida de romance e aventura. Abstractizada na forma de problemas e situações, parece sempre tão mais fácil vista de um livro, de uma cadeira de cinema, resumida a emoções.
Uns anos depois ele tentava lembrar-se se teria havido um momento específico para se apaixonar. Lembrava-se daquela tarde, da chuva, da conversa mal conversada em que tanta coisa ficara por dizer.
E depois havia uns relances rápidos, de aulas, entregas de testes, discussão de trabalhos, cruzamentos nos corredores. Olhares, sempre olhares. Tudo por dizer, quem sou, quem és, que importa isso...
Sim, que importância tem ser alguém... que prazer descobrir alguém para quem não precisamos de ser.
Ele, que estudou filosofia, que sabe coisas do pensamento, percebe a surpresa dos filósofos apaixonados. A mesma dos médicos que adoecem.
Para justificar o amor não existe nada.»
Este livro é assim: cada capítulo vale por si. É possível abrir o livro ao acaso, ler um único capítulo e nele encontrar um único universo soberano, coerente, mínimo em palavras, imenso nas possibilidades e nas dádivas ao pensamento. Mas, após o primeiro momento, de encontro, a leitura aleatória só volta a ser possível depois de ser ter lido todo o livro, de forma certinha e ordenada, porque a escrita de Daniel J. Skråmestø é tão bonita e prende tanto que resulta impraticável ler um capítulo ao acaso sem, de seguida, regressar à primeira página para, literalmente, devorar o romance.
Natural, inteligente, belo, cheio de referências de geração, com zonas muito próximas da prosa poética, o humor familiar que se reconhece imediatamente por ser o de todos os dias, uma escrita limpa, o livro de Daniel J. Skråmestø é uma excelente notícia.
Diz a contracapa da Dom Quixote:
«Olhos de Cão é uma história irónica e fragmentada sobre não-heróis, sobre quatro homens que ainda têm dificuldade em saber como viver. Um vago retrato sobre a homossexualidade num Portugal em fim de século.»
Em parte, discordo. Este livro não é um retrato sobre a homossexualidade; neste livro há homossexualidade porque neste livro há vida – esta vida, escrita assim como é, sem pretensiosismo, sem floreados, sem juízos de valor, sem explicações, sem justificações, sem culpas, sem absolvições, sem medos, sem vítimas, sem monstros, sem dramas; esta vida e interiorização exemplar do direito absoluto e intocável a vivê-la, a pensá-la, a escrevê-la e a partilhar dela aquilo que é nosso, segundo a nossa vontade e as possibilidades da sensibilidade e da inteligência, graças que não faltam a Daniel J. Skråmestø e com as quais poderá sempre escrever o que quiser.
Para já, temos Olhos de Cão para ler, reler e ir lendo. Um livro sobre essa ilusão de estarmos sós, espectro anémico que Daniel J. Skråmestø expõe à comunicação.