domingo, abril 20, 2003
livros e o luar contra a cultura
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Já deveria ter falado de Albert Cossery? Se um blog serve para falarmos do que gostamos, sim. Atrasei-me, no entanto, tratando-se de Cossery uma certa preguiça é desculpável.
Vou começar pelo princípio. Pelo primeiro livro que ele escreveu Os Homens esquecidos de Deus que reune cinco pequenas histórias e foi publicado no Cairo em 1927.
São histórias sobre os mais pobres dos mais pobres, aqueles que falam mas ninguém ouve, os miseráveis.
O barbeiro matou a mulher é uma das mais belas histórias deste livro e mostra-nos a dificuldade do funileiro Chaktour em explicar ao filho que não tem dinheiro para o borrego, que o trevo que o miúdo arranjou não serve para nada.
–Somos pobres porquê?–, perguntou a criança.
O homem reflectiu antes de responder. Depois de tantos anos de indigência tenaz, ele próprio não se lembrava por que eram pobres. Era uma coisa que vinha de muito longe, de tão longe que Chaktour já não se lembrava como tinha começado. Dizia para si próprio que a sua miséria com certeza nunca tivera começo. Era uma miséria que se prolongava para além dos homens. Apanhara-o desde nascença e ele logo lhe pertencera, sem a menor resistência, visto que lhe estava destinada muito antes de ter nascido, ainda na barriga da mãe. O ambiente escuro da oficina, a presença opressora do guarda Gohloche, o crime do barbeiro, a revolta dos varredores, a fome do miúdo, tudo isso vai dar a volta à cabeça de Chaktour.
Há pouco, completamente abatido na minha oficina, perguntava: quem salvará o menino? Pois bem, o menino salvar-se-á sozinho. Não aceitará a pesada herança da nossa miséria. Terá braços suficientemente fortes para se defender. Eis o que o ar anuncia à nossa volta. Escuta Haroussi…
Sobreveio um silêncio que se estendeu muito longe, até ao fundo das vielas lamacentas. O vento tinha deixado de soprar. A miséria do mundo chegava ao fim do seu destino
É o conto perfeito para o dia de hoje. Volto a Cossery mais tarde, para mostrar o modo como a luta será travada, sem violência, mas com escárnio e muito humor.
Edição portuguesa: Antígona (tradução de Ernesto Sampaio)
A obra de Abert Cossery é pequena (ele escrevia a um ritmo lentíssimo), são apenas oito livros, todos eles traduzidos e publicados pela Antigona. Há ainda um livro que é uma espécie de visita guiada pela sua obra e pelas suas ideias: “Conversas com Albert Cossery”, de Michel Mitrani.