quarta-feira, março 12, 2003
a poesia vai acabar
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Hans-Ulrich Treichel é um dos poetas traduzidos e inseridos na colecção Poetas em Mateus, da Quetzal Editores. "Como se fosse a minha vida" é o livrinho resultante de um seminário de tradução colectiva (por João Barrento, Pedro Tamen, Nuno Júdice, Fernando Pinto do Amaral entre outros) de um conjunto de poemas, neste caso, de um dos mais
significativos poetas de língua alemã.
No préfacio, João Barrento, anota : "Na sua discrição,no seu laconismo, na sua recusa de toda a ênfase e grandiosidade, a poesia de Hans- Ulrich Treichel é aquilo que a poesia hoje pode ser- até para não se confundir com outros discursos, mais dados a prolixas ladainhas da interioridade e da memória, a "leituras" da História, ao empolamento mediático de fait divers ou à "objetividade de factos", que o neopositivismo de hoje aceita bem." Trata-se de uma poesia sem pretensão alguma, carregada, aqui ou acolá, de ironia, descritiva; uma poesia feita de observações
de "pequenos sintomas do corpo e da alma". Os poemas apresentam uma aparente ausência de "esforço", porque não há grandes formas. Só uma naturalidade impregnada às palavras. Como diz o poeta "a fidelidade das palavras/ já não sonho com ela".
Como se fosse a minha vida
De noite não escrevo cartas,
qualquer que seja a luz, para onde quer que seja.
E já não me assusta o elevador
vertiginoso, desde que o sono
me habitou à queda.
Na luz do fim da tarde agora brilha
para sempre a minha varanda amarela.
Campos salgados, colinas esburacadas,
já não me assustais.
Como se fosse a minha vida,
fecho as janelas, vou comendo
pão, poupo energia.
Como Joyce em Trieste
Desço de carro pela margem do Arno,
com o livro de alemão sobre os joelhos, como
Joyce em Trieste, atravesso distraído
zonas de peões, vejo os meus ombros
em todas as montras, e é tudo, nem
danças nas praças, nem raparigas
com vestidos de seda, nos arbustos, Ulisses,
com ar de parvo, sorri embaraçado,
de que me servem as palavras?, tusso,
agradeço, isto não vale um chocolate,
e entro num café para morrer.
Regras da casa
Nunca omitir os infortúnios
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.
Ponto da situação
Um céu tão sujo,
desde há dias sem milagres, só barulho
nas ruas, automóveis imponentes,
em quem hei-de acreditar senão
no meu dentista, um ser
humano tem de ler os jornais,
dou uma dentada e pasmo, há anos
já o vento rugia a pedir clemência
e as chaminés tremem
ainda e sempre de felicidade.
Recaída
De vez em quando uma recaída
na fumarada dos blues,
nos uivos do saxofone
de não sei quem.
De quando em quando um dos livros
que estão em cima do guarda-
-fato. Há dias Camus
caíu-me aos pés. Meu Deus,
que belos tempos, quando tudo
era ainda sem sentido e não
me doíam as cruzes.
A fidelidade das palavras
A fidelidade das palavras
já não sonho com ela, vão
e vêem, fogem, troçam,
que terias, se não fôssemos nós,
na tua boca branca de calcário, na tua
língua seca, elas zumbem, sibilam,
até eu lhes dizer, a essas traidoras,
sonoras, ciciadas, mudas, que seríeis
vós se eu não insistisse
em seguir-vos o rasto leviano?
Esforço
O suor corre
em bica como se eu
cortasse troncos de árvore
e afinal eu só escrevo
um pequeno poema
muito frio