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Janela Indiscreta
 
quinta-feira, março 13, 2003  



Poemas
para Cris que faz anos :)




Frésias


Frésias são flores com cheiro a chã
e ela, aos trinta e sete anos, preferi-as
às flores que se vendem por aí
admitia a beleza mas não o esplendor
porque são tristes as repetições
num instante se tornam saberes
e ela, aos trinta e sete anos,
prezava apenas os segredos que mesmos ditos
permanecem como segredos

(em certas épocas, por alguma porta esquecida
escapava-se, sonâmbula, para o pátio
que dá acesso à mata
e, por vezes, iam buscá-la
gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães
já muito longe de casa

tinha por hábito acender fogueiras
de que, depois, se esquecia
e por isso também os aldeões
a temiam)

nunca compreendeu a natureza da vida doméstica
intensa e aflita criança
incapaz de certezas

o que de mais belo soube
sempre o disse, de repente
a alguém que não conhecia

José Tolentino Mendonça





Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É uma arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa






Dos lados do mar

Como Pelléas, também o vento de março
vem dos lados do mar.
Há nele uma aspereza de que sempre
gostei: a da fala
dos homens que estendem as redes
no sol dos varais, a dos frescos
de Siena onde também
passou um vento frio ao anoitecer
- o das escarpas de Alpedrinha,
que sempre, sempre, me escapava
entre os dedos e deixava nos cabelos
um cheiro à matinal luz da resina.
O que entrou pela janela
esta manhã e me bate na cara
traz o aroma das dunas,
cheira a barcos, ferrugem, alcatrão.
É o vento da Cantareira.

Eugénio de Andrade






O Sacrifício

Um cometa errante
numa noite do campo
não o punhado de moedas de cobre

Era uma questão de perigo
esse cerimonial de abandono
onde até os astros eram aludidos

Dizias comigo
será só esta vez
não voltarás a ter medo
e as estrelas adormecerão
pela terra

Experimentei orações e avisos
nos mapas
mas já não havia um único lugar disponível
a barbárie crescera

Então nesse dia eu ardi a minha casa
e fugi de bicicleta

José Tolentino Mendonça

posted by lídia pereira






Amo os gestos imprecisos
um que tropeça, o outro
que bate com o copo,
o que não se lembra,
os distraídos, o sentinela
que não sabe deter o piscar
breve das pálpebras,
trago-os no coração
porque vejo neles o tremor,
o tinido familiar
do mecanismo avariado.
O objecto intacto cala-se, não tem voz
mas só movimento. Aqui pelo contrário
a máquina deu de si,
e o jogo das partes,
um pedaço separa-se,
anuncia-se.
Dentro alguma coisa dança.
- Valerio Magrelli
in ‘A Espinha do P’,
(tradução colectiva)
Quetzal Editores/1994


Canto Esponjoso

Bela
esta manhã sem carência de mito
e mel sorvido sem blasfémia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.

Umidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes de luz
azul
completa
sobre formas constituídas.

Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.
- Carlos Drummond de Andrade
in Novos Poemas, Record/1948


Tejo

Aqui e além em Lisboa – quando vamos
com pressa ou distraídos pelas ruas
ao virar da esquina de súbito avistamos
irizado o Tejo:
Então se tornam
leve o nosso corpo e a alma alada.
- Sophia
in Musa
Caminho/1994



Poética


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
[ protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho
[vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com
[cem modelos de cartas e as diferentes
[maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manuel Bandeira



posted by Ana Alves

e porque foi por referências da cristina que descobri Henri Michaux, aqui vai o maravilhoso CLOWN, em francês mesmo ;) tradução brasileira aqui

CLOWN

Un jour.
Un jour, bientôt peut-être.
Un jour j'arracherai l'ancre qui tient mon navire loin des mers.
Avec la sorte de courage qu'il faut pour être rien et rien que rien, je lâcherai ce qui paraissait m'être indissolublement proche.
Je le trancherai, je le renverserai, je le romprai, je le ferai dégringoler.
D'un coup dégorgeant ma misérable pudeur, mes misérables combinaisons et enchaînements "de fil en aiguille".
Vidé de l'abcès d'être quelqu'un, je boirai à nouveau l'espace nouricier.
À coups de ridicules, de déchéances (qu'est-ce que la déchéance?), par éclatement, par vide, par une totale dissipation-dérision-purgation, j'expulserai de moi la forme qu'on croyait si bien attachée, composée, coordonnée, assortie à mon entourage et à mes semblables, si dignes, si dignes, mes semblables.
Réduit à une humilité de catastrophe, à un nivellement parfait comme après une intense trouille.
Ramené au-dessous de toute mesure à mon rang réel, au rang infime que je ne sais quelle idée-ambition m'avait fait déserter.
Anéanti quant à la hauteur, quant à l'estime.
Perdu en un endroit lointain (ou même pas), sans nom, sans identité.

CLOWN, abattant dans la risée, dans le grotesque, dans l'esclaffement, le sens que contre toute lumière je m'étais fait de mon importance.
Je plongerai.
Sans bourse dans l'infini-esprit sous-jacent ouvert à tous,
Ouvert moi-même à une nouvelle et incroyable rosée
à force d'être nul
et ras...
et risible...

Henri Michaux

posted by Anónimo on 12:33


 
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