Ontem fui ver Giovanna d’Arco Al Rogo (1954), de Roberto Rossellini, numa adaptação do oratório dramático (1938) de Paul Claudel, com música de Arthur Honegger.
O filme começa com uma representação das trevas: cerca de uma dezena ou duas de anjinhos que me pareceram de louça, suspensos num fundo negro, obscurecidos e velados por uma névoa retalhada. Os anjinhos surgem dispostos, primeiro, num braço de espiral, num desenho semelhante à mancha de estrelas da Via Láctea quando é fotografada a partir do Sistema Solar e a espiral só se adivinha; depois, numa espiral completa; e, por fim, em caracol – estas três perspectivas acontecem à medida que a objectiva se afasta das figuras. As figuras são suaves e apagadas, como se a cores pastel se acrescentasse, de alguma forma, o tom acastanhado, gasto e usado da sépia. Às figuras, estáticas, é conferido um andamento circular porque a objectiva se move em seu redor. Percebe-se que são anjos de louça mas, quer por essa petrificação, que inquieta, quer por ser muito difícil a percepção dos seus contornos e pormenores, é como fantasmas que surgem e os sentidos arrepiam-se, crédulos, contra todos os argumentos da razão. Isto, sob os cânticos sacros de Honegger, é muitíssimo impressionante. Na última e quarta perspectiva, celestial, a espiral de figuras é visível através de uma moldura de nuvens, branca, sépia e rosa, em primeiro plano (colocada mesmo à frente da objectiva?). Esta representação, antes do genérico, é uma pintura e é profundamente dramática.
Depois do genérico, começa o teatro. Na peça, Giovanna – Ingrid Bergman -, por todos condenada, vê, revê e por vezes participa, em espaços e tempos desencontrados, na companhia de Frei Dominique, da história da sua vida. Gostei especialmente do julgamento eclesiástico que a condenaria à fogueira, com o satírico quórum composto pelos mais acéfalos e desrespeitáveis animais domésticos: um porco, um burro e um séquito de ovelhas.
O filme, que também é teatro, não se confunde com teatro. Filma teatro, o que é diferente. Os actores, suas vozes e gestos são teatrais, o monólogo (há a presença de Frei Dominique, a quem ela dirige perguntas e do qual se afasta, por vezes, em revolta, mas, arrisco, poderia não estar lá ninguém e o efeito dramático seria o mesmo) de Giovanna é um texto de teatro, e há todo o dramatismo daí resultante.
Mas, a diferença é assombrosa. A expectativa do teatro ao vivo não está lá, nem poderia estar; a carga emocional extrema do teatro que acontece à nossa frente, em que a enésima vez dos actores é para nós, público, a primeira e última, a única irrepetível vez, não existe; nem o agora levantava-me e tocava-te, louca possibilidade que a auto-censura impede mas na qual a imaginação, absoluta liberdade do pensamento, se aninha e permanece. Por vezes desejei que este filme não fosse tão filme e que me fosse permitido assistir à peça de uma distância constante, sem que o palco se afastasse da minha cadeira.
Eu trato mesmo muito mal o cinema. Ou lhe peço fotografias ou lhe peço teatro. Agora mesmo, enquanto corria a internet em busca de uma imagem do filme, essa pintura maravilhosa, acabei por escolher uma fotografia a preto-e-branco... com grão e tudo, como resistir?