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Janela Indiscreta
 
sexta-feira, março 28, 2003  

Noite de Teatro


Ontem fui ver Giovanna d’Arco Al Rogo (1954), de Roberto Rossellini, numa adaptação do oratório dramático (1938) de Paul Claudel, com música de Arthur Honegger.
O filme começa com uma representação das trevas: cerca de uma dezena ou duas de anjinhos que me pareceram de louça, suspensos num fundo negro, obscurecidos e velados por uma névoa retalhada. Os anjinhos surgem dispostos, primeiro, num braço de espiral, num desenho semelhante à mancha de estrelas da Via Láctea quando é fotografada a partir do Sistema Solar e a espiral só se adivinha; depois, numa espiral completa; e, por fim, em caracol – estas três perspectivas acontecem à medida que a objectiva se afasta das figuras. As figuras são suaves e apagadas, como se a cores pastel se acrescentasse, de alguma forma, o tom acastanhado, gasto e usado da sépia. Às figuras, estáticas, é conferido um andamento circular porque a objectiva se move em seu redor. Percebe-se que são anjos de louça mas, quer por essa petrificação, que inquieta, quer por ser muito difícil a percepção dos seus contornos e pormenores, é como fantasmas que surgem e os sentidos arrepiam-se, crédulos, contra todos os argumentos da razão. Isto, sob os cânticos sacros de Honegger, é muitíssimo impressionante. Na última e quarta perspectiva, celestial, a espiral de figuras é visível através de uma moldura de nuvens, branca, sépia e rosa, em primeiro plano (colocada mesmo à frente da objectiva?). Esta representação, antes do genérico, é uma pintura e é profundamente dramática.
Depois do genérico, começa o teatro. Na peça, Giovanna – Ingrid Bergman -, por todos condenada, vê, revê e por vezes participa, em espaços e tempos desencontrados, na companhia de Frei Dominique, da história da sua vida. Gostei especialmente do julgamento eclesiástico que a condenaria à fogueira, com o satírico quórum composto pelos mais acéfalos e desrespeitáveis animais domésticos: um porco, um burro e um séquito de ovelhas.
O filme, que também é teatro, não se confunde com teatro. Filma teatro, o que é diferente. Os actores, suas vozes e gestos são teatrais, o monólogo (há a presença de Frei Dominique, a quem ela dirige perguntas e do qual se afasta, por vezes, em revolta, mas, arrisco, poderia não estar lá ninguém e o efeito dramático seria o mesmo) de Giovanna é um texto de teatro, e há todo o dramatismo daí resultante.
Mas, a diferença é assombrosa. A expectativa do teatro ao vivo não está lá, nem poderia estar; a carga emocional extrema do teatro que acontece à nossa frente, em que a enésima vez dos actores é para nós, público, a primeira e última, a única irrepetível vez, não existe; nem o agora levantava-me e tocava-te, louca possibilidade que a auto-censura impede mas na qual a imaginação, absoluta liberdade do pensamento, se aninha e permanece. Por vezes desejei que este filme não fosse tão filme e que me fosse permitido assistir à peça de uma distância constante, sem que o palco se afastasse da minha cadeira.
Eu trato mesmo muito mal o cinema. Ou lhe peço fotografias ou lhe peço teatro. Agora mesmo, enquanto corria a internet em busca de uma imagem do filme, essa pintura maravilhosa, acabei por escolher uma fotografia a preto-e-branco... com grão e tudo, como resistir?



posted by camponesa pragmática on 13:37


 
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