segunda-feira, março 17, 2003
livros e o luar contra a cultura
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A exposição que está em Serralves é um bom motivo para ler A Brutalidade dos factos - Entrevistas com Francis Bacon.
O livro, como o título indica, é composto por nove entrevistas feitas ao longo de vários anos (desde 1962 até 1986), por David Sylvester, pintor e amigo de Bacon.
O tom é de conversa, mas conversa lenta e inteligente. É bom ler as perguntas de Sylvester (até Bacon gosta) e depois, muito devagar, as respostas. Acompanhar os raciocínios e entrar no mundo de Bacon, no seu processo criativo, nas suas dúvidas e contradições, na sua voracidade.
A sinceridade do pintor é tocante. Fala-nos dos seus pintores preferidos, da forma como a tinta vai ocupando as telas, dos erros que o surpreendem e atraem, do acaso que o empurra, das fotografias e do cinema que o influenciam. Também fala da sua vida, das pessoas que foi conhecendo, dos ateliers que ocupou e da luz, ou não fosse ele pintor.
Nas paredes de Serralves há excertos das entrevistas mas isso não chega, aconselho mesmo o livro, para mais, está traduzido para português e editado no Brasil. Apesar de ser impresso a preto e branco (a versão a cores afastaria o livro das pessoas que mais precisam dele), a edição é excelente. Aliás, a Cosac & Naify tem um belíssimo catálogo que vale a pena conhecer, espreitem o site e descubram, por exemplo, que há uma tradução portuguesa deste livro.
Para quem preferir o original em inglês, há várias edições a circular pela fnac e pela loja de Serralves.
Deixo aqui umas perguntas e respostas para vos aliciar.
Francis Bacon - Você sabe, no meu caso, toda a pintura — e quanto mais velho fico, mais isso é verdade — é fruto do acaso. Bom, prevejo em pensamento, prevejo a imagem, mas dificilmente ela será executada como fora prevista. Ela se transforma em decorrência da própria pintura. Eu uso pincéis muito grossos, e, por causa da maneira como trabalho, muitas vezes não sei o que a tinta fará, e ela faz muitas coisas que são muito melhores do que se seguissem estritamente as minhas ordens. Isso seria obra do acaso? Talvez alguém dissesse que não, porque acaba tornando-se um processo selectivo que começa com algo imprevisto, seleccionado para ser preservado. A pessoa, é claro, procura conservar a vitalidade do imprevisto mas preservando também a continuidade.
David Sylvester - Qual a principal coisa que acontece com a tinta? São os tipos de ambiguidade que ela produz?
FB - E as sugestões. Outro dia, tentando desesperado pintar a cabeça de certa pessoa, usei um pincel enorme, um monte de tinta e comecei a pintar de uma maneira solta, muito solta; no fim, simplesmente já não sabia o que estava fazendo, mas de repente deu um clique e a coisa se transformou exactamente na imagem que eu estava tentando reproduzir. Mas não por causa de uma vontade consciente ou de qualquer coisa ligada à pintura ilustrativa. O que até hoje nunca se analisou é o porquê dessa maneira de pintar ser mais profunda do que a ilustração. Talvez seja porque essa pintura tenha uma existência totalmente particular. Ela vive por conta própria, como a imagem que se queria captar; ela vive por conta própria, por isso transmite a essência da imagem com mais profundidade. O artista assim pode expandir-se, ou melhor, diria que ele pode abrir as válvulas do sentimento, e desse modo pode remeter o espectador à vida com mais violência.
DS - E quando você sente que a coisa, para usar as suas palavras, “deu um clique”, isso significa que ela lhe deu aquilo que queria no começo ou que ela lhe deu aquilo que você gostaria de ter querido?
FB - Isso evidentemente nunca se consegue. Mas existe uma possibilidade de você conseguir, através do imprevisto, algo muito mais profundo do que aquilo que fora desejado desde o princípio.