Flores geométricas não são menos passageiras do que as mais caprichosas. O ser humano é ameaçado por igual destino, por isso se esforça por sobreviver ao desastre. Ana Hatherly tem não só uma consciência da finitude, como do fenómeno da incomunicabilidade. A arte é então impulso para combater a angústia e a sua obra visual, integrando escrita, pintura e cinema, nasce, na linha da pesquisa do acto criador, à medida da ferida.
Há uma espécie de serenidade difusa por detrás do olhar vítreo de Ana Hatherly, a silhueta «revela-esconde» um som interior, a voz torna-se num universo quando, errante, se detém na inevitabilidade do «peso de não-saber». A mão que escreve, essa, dir-se-ia produto de uma filosofia trágica amadurecida e a ideia de um equilíbrio irónico inverte o sentido do obscuro, tornando-se oferenda «a uma eternidade demasiado nocturna»(Eros Frenético). Porque «o criador de imagens é um cego a quem é dado ver numa pequena pausa fria»(Tisana 262). Essa a sabedoria destes textos meditativos e não verbosos, singulares na literatura portuguesa, bem, como a novela O Mestre.
Licenciada em Filologia Germânica e doutorada em Literaturas Hispânicas na Universidade da Califórnia, em Berkeley, leccionou na Universidade Nova de Lisboa. Especialista do barroco _ O Ladrão Cristalino foi distinguido com o Prémio APE _, aguarda-se a edição de Poesia Incurável e Frutos do Brasil (BN). Ensina na Universidade Aberta (Mestrado sobre a imagem das mulheres no cinema português). Tem para publicar, de poesia, O Pavão Negro (Assírio) e Itinerários (Quasi). Deve-se-lhe, a partir dos finais de 50, a primeira proposta portuguesa de poesia concreta, participando depois no movimento da Poesia Experimental Portuguesa.
Mas o seu caminho não ficou por aí, ultrapassou fronteiras no registo exploratório de um conceito de escrita (A Idade da Escrita revela essa luta com a palavra), numa íntima relação _ com raízes no barroco _ entre poesia e pintura. Expõe agora, na Diferença, O Homem Invisível (e na Rhodes + Mann, em Londres): «O homem invisível é algo exterior que surge no momento da criação e ninguém vê.» A exposição detém-se na invisibilidade como uma das propriedades da matéria: «A matéria só é visível quando houver olhos para a ver», o que não deixa de ser uma óptica kantiana.
O que Ana Hatherly faz é-lhe exterior, não como se se tratasse de um Eu separado, mas de «uma outra parte do Eu, é a mão inteligente a transmitir esse processo» (Mapas da Imaginação e da Memória). Diz: «Estudei caligrafia chinesa arcaica, copiando-a até ser capaz de escrever chinês sem conhecer a língua e apliquei essa inocência à escrita ocidental.»
Ana é «um pintor da escrita, homo faber que pensa sobre o que faz». Opõe então o mínimo ao grandioso, porque, presa na «brutal presença da morte nos vivos», assim combate a angústia, com ironia, uma «forma de dor». Afinal, «o excesso de dor ri» (Blake).
Os errantes
os fugazes viajantes
que nós somos
buscando sempre a vibração perdida
diariamente caem
da árvore da memória
onde brilha o nome
o melancólico ansiado barco
Oh que percurso essencial
descrevem os errantes
na sua busca em queda abismados
sobre si mesmos voltados
percorrendo
a arriscada síntese do exílio!
E tu
vontade insatisfeita
onde encontrarás
os frutos da árvore do querer
as alegrias do estar e do ser
que nos rompem o peito
de tanto as ansiar?
A rosa do olhar
que na procura reverdece
a todo o instante esquece
o som da queda
e escuta só
o tilintar da sorte
no inventado bolso da esperança
que nos empurra
impele
lisonjeia
num breve sorriso captado
num furtivo afago
ilusão de ternura
Mas logo logo
algo nos arranca o curativo
nos retira o tapete mágico do repouso
nos remete
para a nossa condição de feridos atingidos
E na busca heróica
do instante transfigurado
o activo martírio de prosseguir
faz de nós
eternos estrangeiros mal-amados
desamparados
peregrinos recém-chegados