O processo de sedução de "Atarnajuat", a sua estratégia narrativa, não pode mesmo deixar de primeiro nos solicitar em perda de referências para depois as irmos descobrindo na trama que o filme vai urdindo
Antes, muito antes do termo "globalização" ter entrado nos usos e discursos, um modo de produção industrial da arte tinha já estabelecido um seu sistema-mundo, uma circulação à escala planetária, ou quase: o cinema, e mais concretamente esse sistema de produção e modo de narração que se corporizou em Hollywood. Mas antes, muito antes do termo "globalização", já teríamos a consciência que o domínio do Ocidente tinha também trazido ao nosso conhecimento outras formas de arte e cultura, que eventualmente marcaram até alguns dos mais marcantes criadores estéticos do próprio Ocidente (as influências da música dos gamelãos de Bali em Debussy ou da estatuária africana em Picasso), e mais latamente entraram nos nossos imaginários.
No sistema de Hollywood, o mundo compõe-se de "territórios" de distribuição e eventualmente também de "localizações" onde os filmes podem ser rodados (quantas vezes já não notámos nos genéricos finais a expressão "filmed on location in..."?), eventualmente rentabilizando economias mas também muitas vezes apropriando-se das próprias configurações físicas, das paisagens - quantas vezes, nos clássicos filmes de aventuras ou noutros, o choque das savanas de África ou dos picos dos Andes sentimo-lo por via dos modos de visão do mundo de Hollywood? O somatório dessas localizações é uma paisagem narrativamente configurada, tendencialmente uniformizada.
O domínio, e a escala em que se concretiza, moldam-nos também as expectativas como espectadores, e será nesse preciso aspecto, aquele que em última análise supõe os modos de recepção dos espectadores singulares, que a proeminência do cinema americano que se corporiza no signo "Hollywood" pode ser culturalmente mais depauperadora, limitando-nos na disponibilidade ao choque do diferente - e não é suposto que uma obra sempre implique um choque do novo, ainda não-conhecido?
O "território" que é o nosso, Portugal, é um dos que tem em todo o sistema-mundo uma maior taxa de penetração dos grandes conglomerados americanos. Mas aquela que no fundo é a outra face, e a grande oportunidade do processo de globalização, a possibilidade de conhecimento de "produtos" e obras das mais diferentes proveniências, essa outra face existe também, e mesmo mais que há ainda poucos anos.
"Atanarjuat - O Corredor" é um exemplo. É um filme "inuit", desses a quem mais usualmente designamos como "esquimós". É mesmo a primeira ficção cinematográfica "inuit". E o primeiro choque que sentimos quando (ainda) nos sentimos perdidos de todas as referências será precisamente, inevitavelmente, o choque do grande Norte gelado. O processo de sedução de "Atanarjuat", a sua estratégia narrativa, não pode mesmo deixar de primeiro nos solicitar em perda de referências para depois as irmos descobrindo na trama que o filme vai urdindo. Eventualmente iremos apercebendo elementos estruturais da narrativa que induzem as modalidades de reconhecimento e de recomposição da percepção: o desejo e o amor, o confronto de rivais que é também a de famílias ou tribos, a luta individual do denominado Atanarjuat face a um poder que lhe quer sonegar a relação matrimonial, etc. Se estivermos disponíveis à diversidade poderemos sentir um apelo primordial da ficção que toma a sua mais precisa configuração narrativa e espacial na grande corrida de Atanarjuat.
Mas para isso importa estar disponível, atentos certamente, talvez mesmo alerta. Entre umas quantas estreias todas as semanas, os filmes passam vorazes. Para escolher, precisamos antes do mais de saber e é uma evidência que, sobremaneira ocupados com as solicitações da actualidade, os sistemas de mediação crítica soçobram muitas vezes numa reprodução indiferente. "Atanarjuat" terá curta carreira nos écrans. Não implica qualquer maior valoração em abstracto, ou comparativamente entre os filmes em exibição, resgatá-lo à indiferença e reconhecer que é o mais urgente de ver.
Esta história, não a sabíamos - e isso é o mais importante no choque de um filme em nós.