O chinês, língua feita para a caligrafia* (1). A que induz, que provoca o traçado inspirado.
O signo apresenta, sem forçar, uma ocasião de voltar à coisa, ao ser que só precisa insinuar-se dentro, na passagem, expressão que realmente espreme.
Os chineses eram chamados a um outro destino. Por muito tempo o chinês havia sofrido, como em outros domínios, o encanto da semelhança; primeiro a próxima, depois a semelhança longínqua, depois a composição de elementos semelhantes.
Barreira também. Foi preciso saltá-la.
Mesmo a da mais longínqua semelhança. Curso sem retorno. Semelhança definitivamente para trás.
Abstrair é libertar-se, desatolar-se.
O destino do chinês na escrita era a absoluta não-gravidade.
Os caracteres evoluídos convinham melhor que os arcaicos à rapidez, à agilidade, à viva gestualidade. Uma certa pintura chinesa de paisagem exige rapidez, só pode ser feita com a mesma súbita elasticidade da pata do tigre que salta. (Para isso é preciso primeiro ter estado contido, concentrado, sem tensão no entanto*(2).)
Do mesmo modo, o calígrafo deve primeiro recolher-se, carregar-se de energia para liberá-la em seguida, descarregar-se dela. De um golpe *(3).
O saber, os “quatro tesouros” da câmara da literatura (o pincel, o papel, a tinta, o tinteiro) é considerável e complexo. Mas em seguida...
A mão deve estar vazia para não bloquear o influxo que lhe é transmitido. Deve estar pronta ao menor impulso assim como ao mais violento. Suporte de eflúvios, de influxo.
...De algum modo semelhante à água, ao que ela tem de mais forte e de mais leve, de menos perceptível, como são seus vincos*, que sempre foram um objeto de estudo na China.
Imagem do desapego: a água que não se prende, sempre pronta a instantaneamente partir de novo, água que, mesmo antes da chegada do budismo, falava ao coração do chinês. Água, vazio de forma.
Yy Tin, Yi Yang, tche wei Tao
Um tempo Yin, um tempo Yang
Eis o caminho, eis o Tao.
Caminho pela escrita.
Ser calígrafo como se é paisagista. Para melhor. Na China é o calígrafo que é o sal da terra.
Nessa caligrafia - arte do tempo, expressão do trajeto, do curso -, o que suscita a admiração (independente da harmonia, da vivacidade, e dominando-as) é a espontaneidade, que pode chegar quase até a explosão. Não mais imitar a natureza. Significá-la. Por meio de traços, impulsos. Ascese do imediato, do relâmpago.
Tais como são atualmente, distanciados de seu mimetismo de outrora, os signos chineses têm a graça da impaciência, o vôo da natureza, sua diversidade, sua maneira inigualável de saber se curvar, saltar de novo, se aprumar.
Como faz a natureza, a língua na China propõe à visão, e não decide.
Sua escassa sintaxe que deixa a adivinhar, a recriar, que deixa lugar à poesia. Do múltiplo sai a idéia.
Caracteres abertos em várias direções.
Equilibração.
Toda língua é universo paralelo. Nenhuma com mais beleza que a chinesa.
A caligrafia a exalta. Ela perfaz a poesia; é a expressão que torna o poema válido, que avaliza o poeta.
Justa balança dos contrários, a arte do calígrafo, curso e percurso, é mostrar-se ao mundo. — Tal como um ator chinês que entra em cena, que diz seu nome, seu lugar de origem, o que lhe aconteceu e o que ele vem fazer — é revestir-se de razões de ser, fornecer sua justificação. A caligrafia: tornar patente pela maneira como se tratam os signos que se é digno de seu saber, que se é realmente um letrado. Deste modo alguém será... ou não será justificado.
Henri Michaux (tradução Paulo Neves )
Notas:
1-Mais que caligrafia, arte da escrita. Nas outras línguas, com exceção do árabe, a caligrafia, quando existe, é quase apenas a expressão de um tipo psicológico, ou, nas grandes épocas, de uma atitude ideal geralmente religiosa. Há austeridade, compostura rígida, uniformemente rígida, que produz linhas e não palavras, espartilho uniforme de nobreza, de liturgia, de gravidade puritana.
2-A meditação, o recolhimento diante da paisagem pode durar vinte horas e a pintura não mais que algumas dezenas de minutos. Pintura que deixa lugar ao espaço.
3-A elasticidade do tigre, mesmo em religião. No Tch’an, no Zen, é o golpe instantâneo da iluminação.