«Pára de explicar». Imerso no sono, o jovem Jakob escuta, com clareza, estas palavras. Foi subtraído à abjecção do sinistro Instituto Benjamenta, escola de baixo coturno, regulamentada como uma caserna prussiana, onde os professores dormem indefinidamente e os alunos pouco ou nada aprendem. Vive, por breves instantes, uma doce fantasia de sabor oriental, de uma delicadeza talvez um pouco kitsch: encontra-se, seguramente pela primeira vez em todo o romance, numa idílica paisagem natural - uma montanha verdejante, um prado bordado de flores ou de beijos trabalhados em forma de flores. A descrição não nos pode iludir: «Pouco depois os beijos pareciam-me estrelas e, logo a seguir, novamente flores. Era a natureza e não era ela, as coisas eram imagens e corpos ao mesmo tempo.» Nesta nova terra ou neste novo céu, anunciado já nas derradeiras páginas da obra, uma jovem de uma beleza magnífica, cuja nudez não poderia deixar de inebriar, lança - do interior do «doce sonho, polido como um espelho» - o enigmático repto: deixa-te de interpretações, não argumentes mais, desiste de explicar.
O apelo dirige-se a Jakob von Gunten, protagonista e narrador do romance homónimo* de Robert Walser, escritor suiço nascido em 1878 e falecido no dia de natal de 1956 durante um passeio matinal na neve, depois de uma vida de errância - passada entre múltiplos empregos menores, repleta de fracassos literários - e vinte e três anos de clausura numa clínica psiquiátrica sem escrever uma só linha. Dissimulado naquele improvável idílio, o dito espirituoso ameaça passar despercebido, mas é quase todo um programa que nele simultaneamente se revela e oculta. Garante Roberto Calasso, em Os Quarentas e Nove Degraus, que ele configura «o último lema da obra, que sela e absorve os precedentes». Na verdade, parece ser igualmente válido para o leitor e, sobretudo, atingir como uma seta aquele que se propõe falar sobre «o poeta mais escondido que existiu», na bela e certeira definição de Elias Canetti. Como em epígrafe de um livro de Steiner se lê a desarmante máxima de Geordes Braque - «As provas cansam a verdade.» -, assim se poderiam colocar aquelas palavras do Jakob von Gunten como inscrição e aviso na antecâmara ou frontispício de toda a obra de Walser.
(...)
Walser desencoraja vivamente o leitor a procurar segredos nos seus escritos e, particularmente, em Jakob von Gunten, o romance que, a crer nos testemunhos do seu fiel amigo Carl Seelig, lhe era mais caro e onde narra a história de uma enigmática escola, cujo único e exclusivo ensinamento consiste em inculcar nos seus alunos - até à irreversível consumação do auto-anulamento - os valores da obediência, da humildade e da inércia. «Descobrir Walser» - assinala Calasso - «é um pouco como para Jakob von Gunten descobrir o Instituto Benjamenta: passa-se da suspeita de mistificação à certeza do mistério e, por fim, à descoberta de que o centro daquele mistério é a sua quase identificação com a mistificação.» Numa tentativa de rebelião, cujo desfecho inglório redundará numa fidelidade crescente e inabalável ao Instituto, Jakob dirige-se em cólera ao director: «Não se aprende rigorosamente nada aqui e eu não quero ficar. Devolva-me o meu dinheiro e eu irei para o diabo. Onde estão os professores? Há aqui um qualquer plano, uma ideia? Absolutamente nada.» Conclui Calasso que «a fuga do pensamento é o segredo de Benjamenta e também de Walser».
Pedro Sobrado, "No Covil de Robert Walser", in Revista de Comunicação e Linguagens (editada pela Relógio d'água)
* Jakob von Gunten, de Robert Walser, em breve nas livrarias, graças à Relógio d'água